O diabo teria começado sua carreira como agente secreto de Deus, diz escritor
fé, Jesus quinta-feira, outubro 02, 2008
Qualquer cristão com um mínimo de formação religiosa é capaz de fazer um breve resumo da carreira do Diabo: originalmente um anjo poderoso, ele teria se rebelado contra Deus no princípio dos tempos, induzido Adão e Eva a cometer o chamado pecado original e, ainda hoje, estaria pronto a induzir a humanidade a fazer o mal, manipulando tudo e todos nos bastidores.
O problema, afirma um livro que acaba de chegar ao Brasil, é que essa trama básica não estaria em lugar nenhum da Bíblia, mas teria sido montada por teólogos cristãos dos séculos 3 e 4, responsáveis por uma leitura um bocado criativa das Escrituras. Segundo essa visão, o Satanás bíblico não seria um rebelde contra Deus, mas uma espécie de "agente secreto" ou "chefe do FBI" divino, responsável por testar a lealdade dos seres humanos.
"O Satã no Novo Testamento deve ser percebido como tendo uma posição equivalente a um Primeiro-Ministro, ou um Procurador-Geral da República, ou diretor do FBI, e não mais diabólico do que muitos dos mais zelosos representantes dessas posições aqui na Terra", escreve o pesquisador. A visão geral expressa nos Evangelhos e nos outros livros bíblicos do começo do cristianismo, segundo o autor, é que Satanás simplesmente toma gosto excessivo por suas funções de testador da humanidade, e por isso perde as boas graças de Deus, sendo expulso do Céu.
Problemas de nomenclatura
Antes de chegar a esse ponto, porém, Kelly tenta entender as primeiras aparições do personagem no Antigo Testamento, as quais são um bocado complicadas por problemas de nomenclatura. É que a palavra hebraica satan e seu equivalente aramaico satanah (o aramaico, é bom lembrar, era a língua provavelmente usada por Jesus no dia-a-dia) podem simplesmente funcionar como um substantivo comum, que significa algo como "adversário".
"Adversário" de quem, a propósito? Um dos poucos exemplos em que "o satã" (e não Satã/Satanás, como nome próprio) aparece na Bíblia hebraica é o livro de Jó. Nesse livro bíblico, um humano de altas qualidades morais e comportamento correto, o Jó do título, perde sua família, seus bens e sua saúde por instigação "do satã", que sugere a Deus um teste para a fé de Jó.
"No livro de Jó, 'o satã' é simplesmente um membro do Conselho Divino, um dos servos de Deus cuja função é investigar os acontecimentos na Terra e agir como uma espécie de promotor, trazendo os malfeitores à justiça", explica Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Universidade Yale (EUA).
"Quando Javé se gaba de seu piedoso servo Jó, o anjo-promotor simplesmente pergunta, seguindo sua função, se a fé de Jó é sincera", diz ela. Em algumas traduções da Bíblia, em vez de ser designado como "Satã", esse personagem é simplesmente chamado de "o Adversário". Aparentemente, ele é visto pelo autor anônimo do livro de Jó como um dos "filhos de Deus" -- expressão que se refere aos anjos que formam a corte divina.